“Me senti pequena
e enquanto corpo me senti
habitando outros corpos
eu era pedra,
a pedra era corpo”
Cibele Nogueira
Toda paisagem é uma invenção. Se em nossos olhos vemos algo que não foi tocado, imaginado, manipulado pela ação humana, este recorte constitui a face mais real da natureza. Costumamos denominar uma vista, um ângulo da cidade ou um pôr-do-sol, como paisagens. Mas estas, na verdade, são a face de um antigo conceito que nos traz até aqui, neste exato momento, no coração do tempo.
O conceito de paisagem foi inventado ao longo da história com intuito de definir, ou enquadrar, aquilo que o olho humano enxergava, mas não conseguia assimilar por completo. Por esta razão a paisagem se constituiu como um recorte do mundo visto a partir de uma subjetividade. Uma apresentação da natureza segundo uma individualidade criadora, que impõe sobre as imagens os seus recortes, intenções e discursos.
Em corpo-pedra-corpo-terra a artista Cibele Nogueira nos apresenta uma contribuição para este histórico debate. Aqui, a paisagem é um conceito incorporado à vida da artista e não se resume ao procedimento fragmentário da projeção e criação de imagens.
A série em exposição é resultado de uma viagem às ilhas de Paraty (RJ), onde a artista fotografou parte da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, região da Mata Atlântica. O recorte da natureza foi realizado pelo ato fotográfico e posteriormente posto em perspectiva pela manipulação das fotografias. Cibele Nogueira realiza um esforço de reconstruir as imagens, mas não como a natureza se apresentava para ela durante a experiência. Para além da memória, quis a artista promover uma ideação de paisagem, uma prospecção de existência para aquele lugar.
O que se apresenta nestas colagens, através do ato de rasgar as fotografias, mesclá-las com outros papeis e criar outras imagens, é a reconstrução da paisagem. A artista atravessa a beleza das imagens e sua estética sublime desfigurando a memória e engendrando outros espaços, reais ou não. A Mata Atlântica aparece rasgada, ferida, quase parodiando a realidade de abandono e descaso. Os recortes, texturas, cores e sobreposições minoram as áreas verdes da imagem – historicamente importantes paras as cenas de natureza. Os corpos se apequenam, imiscuem-se nas frestas, como se pudessem camuflar a própria presença.
Neste sentido, corpo-pedra-corpo-terra é, também, um alerta sobre o que não deve ser destruído, um lembrete do quanto somos pequenos e vulneráveis diante da natureza. Aqui está posta uma reflexão, um convite e uma partilha. Assim como corpos, pedras e terra são plurais, muitas são as chaves de acesso a estas obras. O convite é que nos deixemos atravessar por estas imagens, permitindo que elas nos digam mais de si mesmas que nós para elas, invertendo a velha lógica da paisagem. Pois, aqui, nós somos o recorte.
Shannon Botelho
2022